Mood: Arcade Fire, In the backseat

É o destino das viagens longas, o de me esquecer o que existia antes delas. Sempre foi assim desde pequena, quando não havia vontades nem quereres. Os restos de comida amachucavam-se à minha volta e com o tempo deixaria de me lembrar que houve sequer uma partida. A vida no meu pequeno espaço pareceria interminável, durando desde sempre e para sempre, com a companhia entretanto familiar de garrafas com água já morna. De lá para cá o tempo permitiu-me conquistar uma posição mais elevada no banco de modo que pelo menos agora não enjoo, mas continuo a ver o filme a passar lá fora intacto e liberto, alheio ao fechamento em que me vejo, de conversas de volume educado. Sinto sempre o mesmo: não me lembro como era este filme antes de aqui estar agora. Que fiz antes disto? Teria de fazer um esforço para rebobinar os passos, pois rapidamente retorno ao inerte que nunca mais passa e salto para o depois que demora a chegar. A mente agora adulta foge-me sem trela. Em pequena limitava a sentir-me aborrecida de morte, e a vomitar de vez em quando.
Encaixarmo-nos no próprio corpo enquanto ele está em compasso de espera é um exercício de não-fuga; e não haja dúvida, fazemo-lo melhor em pequenos, quando ainda somos especialistas do brincar.
"Não pensar no passado, nem no futuro, o que interessa é o que está aqui" - Dizia A. "Sim." - respondi-lhe - "é importante saber parar, enquadrar e sentirmo-nos." Seria mais importante ainda consegui-lo de facto- pensei para mim. Pois ao sentir-me encaixotada em viagem só me ocorria a canção que ensina sobre estar onde não queremos estar, e do livro que lá longe, à minha cabeceira, fala das insustentabilidades voláteis de se ser humano. Nunca mais chego, para saber como acaba.

Era nisto que Tereza estava a Pensar. Depois, apertando a cara contra a cabeça felpuda de Karenine, murmurou: «Não te zangues, Karenine, mas acho que temos de mudar de casa outra vez.»

Kundera, M. (1983). A Insustentável leveza do ser. Lisboa: D. Quixote


Comentários

Ronin disse…
Nenhuma viagem é interminável. E por vezes, é preciso parar algumas vezes para reabastecer, esticar as pernas, parar, apanhar ar. E quantas vezes nessas paragens estamos com vontade de continuar, para não perder tempo, mas essas paragens são fundamentais, para podermos continuar a nossa viagem? Por vezes, tb durante a viagem que parece interminável, surge de repente uma nova estrada, que não contavamos, e de repente chegámos ao destino. Não é um atalho, é apenas um caminho novo, e diferente. Bj grande.
Anónimo disse…
"Viagens que se perdem no tempo,
viagens sem princípio nem fim,
beijos entregues ao vento,
e amor em mares de cetim.
Gestos que riscam o ar,
e olhares que trazem solidão,
pedras e praias e o céu a bailar,
e os corpos que fogem do chão.
E voas sobre o mar, com as asas que eu te dou,
e dizes-me a cantar: "É assim que eu sou"..."

Pedro Abrunhosa

beijo

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