Mood: Silencio

Fome. Procuro visualizar nas vísceras algo próximo. Ser humano coloca-nos num patamar de necessidades constantes, suprimidas em alternância, num esquema circular de equilíbrio-desequilíbrio que, sob um certo prisma, nos torna algo patéticos, eternamente dependentes e similares. Também por esse motivo somos encantadores, mas simultaneamente ridículos e desrealizados quando sustentamos o próprio envelope em matéria de rápido desgaste. Porque somos muito frágeis à força da gravidade. Todos temos de parar para ir abastecendo, e quando caímos sem aviso, somos todos igualmente desastrados.
A fome. Há um limite que a define - vislumbar-lhe o fim a curto prazo ou não. Hoje ouvia esta mulher idosa perdida no abandono de uma terreola alentejana chorando a dor que a fome lhe trepava à garganta, e ocorria-me como a possibilidade de resolução é em si mesma um alimento. Falava do frio, talvez sintoma também da subnutrição, e chorava. Sem teatro nem orgulho, exactamente na medida da sua ânsia. Ouvir alguém chorar com fome é coisa eterna. Um eco agudo que se propaga pelo corpo à velocidade dos nervos, como mergulhar de uma só vez num mar gelado. Os pulmões estanques de ar frio. Sentia-me diminuída em volume, cada vez que numa golfada de ar se abria um novo soluço de dor, do corpo que lhe doía por causa da fome. Os kilómetros de distância apagaram-se e fecharam as nossas vozes juntas até ao escuro em que ela se debatia. Havia um silêncio quase espiritual. O silêncio do abandono soa muitas vezes assim. Fiquei imóvel, amarrotada e alentejana entre os seus cobertores no quarto frio, lado a lado, sentindo-lhe o hálito já seco, e cristais de sal a cercar-lhe os olhos que imagino pequenos. Fiz o que me era esperado; prometi-lhe, no frente-a-frente de narizes frios, a ajuda que não sabia se iria chegar. Depois que já não a ouvia senão dentro da minha cabeça, vi-me sentada de novo e senti-me cair sem qualquer elegância. Desajeitada. Odiei a ilusão presunçosa deste trabalho que faço, à semelhança de todos os envelopes que adoramos dobrar com requinte mas sem um vinco de humanidade. Há dias em que inevitavelmente nos sentimos fraudulentos e isso também é uma espécie de fome.

Comentários

Richie disse…
Mas ter essa consciência já é, por si só, sinal de uma enorme nobreza.

Bem hajas, Joana, pelo que és, pelo que fazes, pela diferença, pelo que inspiras e contagias.

Um beijo grande
Anónimo disse…
de facto escreves muito bem. Sempre achei!

beijos anónimos.

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